Ciranda de Sentimentos (de Rodrigo Fonseca, Rio Show)

Saiu nesta sexta esperada crítica do jornal O GLOBO para o filme “A falta que nos move”, com a deliciosa surpresa do bonequinho (símbolo consagrado pelo jornal) aplaudindo de pé. Abaixo a transcrição da resenha e acima a imagem, para ler no formato original (é só clicar!).

Ciranda de sentimentos

‘A falta que nos move’ conduz a plateia a um pátio semiótico, numa desconfortável (e por isso mesmo bem-vinda) interseção entre teatro e cinema, para testemunhar um jogo, uma espécie de “pique tá”, no qual cinco atores brincam na fronteira entre ação e representação, real e encenação. Cinco pessoas, aparentemente todas atores, vão a uma casa (o lar real da realizadora do filme, a diretora teatral Christiane Jatahy), numa véspera de Natal, esperar a chegada de Papai Noel e de um Godot sem nome que nunca chega. Seu atraso catalisa uma ciranda que gira no sentido anti-horário à afetividade, conforme um balé de carências, cobranças e decepções atomiza relações. Todos magoam e são magoados. Mas um dos convidados, Pedro (Pedro Brício numa atuação estonteante), parece portar o fator de cura do cinismo que o torna imune ao remorso, incendiando a ceia natalina com a pólvora da franqueza.

Feito deus ex machina, Christiane Jatahy, que montou peças consagradas como “Leitor por horas” e “Conjugado”, alimenta a brutalidade improvisada entre os personagens numa brecha metalinguística de realidade, que entra como coadjuvante no palco da ficção na forma de mensagens de celular. Cada torpedo enviado pela diretora dá uma instrução do que os cinco devem fazer logo no começo do longa, quando a fronteira entre atuar e ser é bem demarcada.

Pouco a pouco, caem as barreiras e torna-se obsoleto para o espectador a percepção de que os atores estão numa pesquisa de linguagem sobre limites da atuação. Cena a cena, a ficção se apossa do quintal por meio de um conjunto de dispositivos adotado por Christiane. Daí para frente, qualquer interferência do mundo externo, de distanciamento e de lucidez, vai dando licença a um varal de roupa suja sentimental no qual tudo o que era cerebral vira emocional. O “pique tá” do início vira um drama carregado, na linha do seminal “O reencontro” (1983), de Lawrence Kasdan, no qual o verdadeiro Godot (com todo o seu absurdo anunciado) é a renúncia ao egoísmo, à vaidade — coisas que nenhum dos cinco sabe praticar.

Numa reflexão sobre o ônus da amizade, Christiane deixa que a fotografia de Walter Carvalho, galvanizada pela montagem de Sérgio Mekler, imprima na tela um ritmo frenético, do qual não se sai impune.

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