Sesc São Paulo
Algumas histórias não perecem no tempo. Ao contrário disso, compreendem suas transformações, encontrando outras formas de serem recontadas. Macbeth, de Shakespeare, é um desses enredos de escalada ao poder que se reinventam com alguma frequência. Na adaptação livre de Christiane Jatahy, o formato da narrativa diz tanto quanto a história contada, retomando uma de suas marcas registradas na criação e na direção teatral. Na combinação entre os discursos da câmera e da cena presente, da realidade e do plano ficcional, emerge um diálogo com a contemporaneidade. O título escolhido para a montagem remete à premonição das bruxas, que condiciona a vitória de Macbeth à impossibilidade de deslocamento do bosque ao castelo. Afinal, quem teria a força de fazer marcharem as árvores? A linguagem, com sua multiplicidade de leituras, talvez possa realizar esse feito. Para o Sesc, além de reafirmar a difusão cultural como elemento importante para os processos de educação permanente, a realização do projeto junto ao Le CentQuatre, Odeon Theatre de l’Europe, Tempo Festival, Cena Contemporânea e Mousonturm, é uma oportunidade de exaltar a capacidade de mobilização que reside na cooperação e no intercâmbio institucional.
CHRISTIANE JATAHY
O que é a política hoje?
Qual o destino da democracia?
Não só no Brasil, mas no mundo. O que pensar desse sistema global, dessa crise econômica, social, humana, ecológica que de maneira arrepiante coincide com a normalidade e se torna uma ferramenta dos governos num processo contínuo de tomadas de decisões que não decidem absolutamente nada? Um estado de exceção permanente com perpétuos golpes de Estado para manter o poder.
Nessa “nova noção de política”, que se confunde com segurança, o Estado ao invés de resolver as causas, apenas trata – ou pune – as consequências. Tenta controlar os efeitos de uma política, que não atende à maior parte da humanidade, agindo através do controle, do medo, da vigilância, incitando uma violência sem precedentes que atinge a todos.
E nesse paradoxo atual em que vivemos, em que o Estado parece ter abandonado o domínio da política e entrou em uma terra de ninguém, cuja geografia e as fronteiras são ainda desconhecidas, o bem e o mal ficam difusos e a realidade se torna a pior ficção.
E a pergunta se ainda é possível mudar sai nesse trabalho do âmbito da subjetividade e avança em desespero para o espaço público. Nessa busca de respostas – ou apenas para seguir fazendo perguntas – nos voltamos como em um sonho ao texto de Macbeth – e, através da peça pesadelo de Shakespeare, olhamos o mundo hoje, não para procurar quem seria o tirano do aqui e agora, mas para através do espelho, dos reflexos e das sombras pensarmos em nossas escolhas.
MARCELO LIPIANI
Falar sobre a espacialização cenográfica nesta trilogia “Julia / E Se Elas Fossem para Moscou? / A Floresta que anda” só é possível quando entendemos a proposta específica de associar teatro e cinema na mesma obra.
Considero que o início desta pesquisa se deu em 2001, com o espetáculo “Carícias”, onde o cinema entrava na cena, não através da câmera, ainda ausente na encenação, mas pelo olhar do espectador, que em arquibancadas móveis sobre rodas e com variação de altura, tinha seu ponto de vista alterado como em “ travellings e gruas “.
Em “Julia”, a artesania cenográfica se soma a tecnologia colocando a imagem fílmica em movimento no espaço cênico. A ação dos atores mexendo nas telas ligadas por cabos de aço à carrinhos de cinema invertidos, provocava a sincronicidade precisa do movimento do projetor. Similar a simplicidade das maquinárias teatrais, como a abertura da cortina da boca de cena, em que um único movimento provoca duas ações contrárias.
Em “ E Se Elas Fossem para Moscou?” o balé da cenografia na encenação de trainéis, móveis, câmeras e tripés; se justifica no enquadramento cinematográfico do filme, exibido ao vivo na sala anexa. Duas obras em uma.
Agora, “ A Floresta que anda” sobrepõe todas as experiências citadas, criando uma performance “híbrida”, onde tudo que antes era aparente agora some. Referências das duas últimas obras estão presentes aqui também, inclusive na idéia das telas em movimento como no “Julia”, além do frame estreito, como uma janela que se abre para cena.
“A Floresta que anda”, na minha opinião é a espacialização mais complexa e, provavelmente a mais aberta nas encenações da Chris Jatahy, que vale ressaltar que em todos os trabalhos que fizemos juntos, sempre teve muito claro o “conceito/ espacialização” da encenação, antes mesmo, de iniciar o processo de ensaios com os atores. Aqui, a experiência é nova: espacialização e encenação se deram de forma simultânea e complementar.
PAULO CAMACHO
Fazer um filme é observar do fundo do espelho. É olhar de volta, através da noite sem nome. Existem muitas formas de se fazer cinema, nenhuma é solitária. Por isso partimos juntos para encontrar essa tal floresta que anda, que tem no corpo as marcas das mudanças pelas quais passou pelo mundo, que aos poucos nos cerca e revela seu abismo, suas sombras. É nela que entramos nesse filme. É nela que fazemos nosso filme.
FERNANDA BOND
O projeto tem a potência das coisas impossíveis. Seja pela sua ausência de lugar em qualquer polo artístico isolado, seja pelos desafios tecnológicos que forçam os limites do que já foi idealizado e realizado, seja pelo seu conteúdo trágico em um mundo dominado pelo drama. A mistura é indigesta e ninguém está em uma posição confortável, dos artistas aos espectadores. Como falar das nossas mãos sujas sem incômodo? Revisitar Macbeth, hoje, é mergulhar no horror contemporâneo, no mal-estar que nos atravessa a todos. Para deste incômodo, quem sabe, acessar uma via singular de transformação possível.
JULIA BERNAT
Na tentativa de fazer uma floresta andar. Alguns arbustos se movem. Um galho ou outro quebra. As árvores continuam vivendo. Parece a priori inconcebível. É impossível decodificar o procedimento. Tudo indica o contrário. E quem sabe? Talvez as florestas, sendo elas regidas por leis invisíveis ao olho nu, (talvez!) sejam capazes de andar. Que ritmo é esse?
ISABEL TEIXEIRA
“A Floresta que Anda”, uma dramaturgia em construção no momento em que a ação se dá, não tem seu manancial no Presente do agora. Para além da força do “instante já” onde a performance se realiza, há que se visitar seus antecedentes. Terceira parte de uma trilogia da Cia. Vértice, a Floresta é território único, que não esquece de onde veio. O trabalho, altamente vinculado ao momento que nós e este nosso país (que cobre grande parte da cartografia da América Latina) ocupamos, traz em suas raízes o mote da reconstrução do texto clássico. Em “Julia”, o texto de Strindberg se mostrava em primeiro plano. Em “E Se Elas Fossem Para Moscou?”, a dissolução do texto de Tchekhov, sem perder suas raízes, trazia à tona as relações entre as três irmãs. Aqui, nessa Floresta, onde reconhecemos nossos territórios, o texto se dissolve ainda mais. O cenário é personagem principal. O texto de “Macbeth” é base e alavanca para a ação. Mas, onde está o ator? Onde está Sheakespeare? Onde estamos nós? A Floresta se mostra como um espelho distorcido de uma realidade ainda não reconhecida. Cabe ao espectador de uma viagem que beira o abismo, a reflexão sobre o momento que vivemos hoje, agora. Nada mais pungente e desafiador. Se não houver respostas é porque ainda não é o momento. Mas os espelhos-telas-filmes estarão abertos. Cabe a nós o humilde exercício de uma tentativa de reconhecimento. Nunca o espectador foi tão autor de uma obra. A partir da coerência de um trabalho continuado, cabe a quem assiste a dramaturgia do presente. Todos, como Sheakespeare, somos autores. Não há ponto final. Este trabalho é vírgula, respiração. E no instante seguinte, precisamos morrer um pouco. Só aí será possível renascer para o Novo.
STELLA RABELLO
“Um convite ao deslocamento.
Uma mudança de mirante.
Duvidar do que os olhos veem.
Questionar o lugar que se ocupa.
Desconfiar do que parece natural.
A floresta avança, está em movimento
E não tem volta”
HENRIQUE MARIANO
Como falar de um trabalho que fala do agora, do que acontece nesse exato instante e que já virou passado? De como nós somos agentes disso tudo e com um simples movimento em outra direção tudo pode se tornar diferente? Qual é esse momento onde a escolha é feita? Temos nós a consciência de tal ato? Eu fiz a minha escolha, fizemos a nossa escolha juntos, cada um da equipe a seu modo e agora faremos com o público a cada noite para um lugar que descobriremos juntos.